domingo, 29 de julho de 2012

No Jardim, Guttemberg Guarabyra



Claro que o jardim é lindo. Por Deus, longe de mim achar que o pátio repleto de canteiros e rodeado pelo muro velho e úmido, por onde se desenham as heras, não é uma visão no mínimo bela. Na verdade, trata-se de uma paisagem sublime, enternecedora, rara, que me proporciona momentos de intensa e profunda paz. Minha aflição, portanto, não está ligada a nenhuma cisma com a formosura do lugar. Pelo contrário, pois aqui me sinto inteiramente revigorado pela brisa carregada de perfumes jovens e delicados e pelos pássaros em movimento constante e alegre. No entanto, não sei definir ao certo se esta emoção que experimento agora, enquanto caminho entre flores, não aumenta meu infortúnio. Evidentemente, guardo a suposição apenas para mim. Deus sabe que eu não perturbaria, por qualquer vão motivo, uma anfitriã tão hospitaleira.

Descendo mais à frente, passamos pela fonte que mencionara ao me convidar para visitar o jardim. Pelo que havia descrito no dia em que solicitou meu comparecimento, não imaginei que me defrontaria com um terreno tão grandemente organizado e com alamedas tão perfeitamente cultivadas. Aliás, confesso que aceitei o chamado apenas porque algo aqui dentro me advertiu para aceitá-lo. Não fosse esse toque misterioso, essa brincadeira enigmática, juro que não aceitaria a missão de avaliar um jardim que, ao que tudo indicava, não merecia minha apreciação. Ainda mais numa semana em que me sentia tão desanimado.


Deus, essa Presença que sempre esteve comigo enquanto cuidei, tratei, cultivei cada planta, cada flor, sabe o quanto gosto de jardins e o quanto desejo ajudar a todos que os cultivam. Mas, nessa idade, e depois de ter construído tantos jardins mundo afora, sinto-me cada vez mais cansado e a cada dia menos disposto a trocar minha cama macia pela visão de crisântemos, copos-de-leite, estrelas-do-norte ou de jerusalém. Hoje, quedo-me inteiramente satisfeito apenas ao divisar as jabuticabeiras no quintal, que aprecio através da janela do quarto. Para meus olhos, que tanto se encheram de cores vida afora, as frutas negras, grudadas no caule são o bastante para proporcionar às minhas retinas exaustas um bom e merecido descanso.


Deus, porém, tão amigo, sabe como tirar a gente do marasmo. E, com aquele toque sutil, me fez aceitar o convite inesperado. E é assim que cá estou, espirrando entre os gerânios, tropicando nos canteiros e procurando convencer esta fada que me guia, de que minha aflição, de que minha tosse nervosa nada tem a ver com o cultivo perfeito que me apresenta. Tem a ver apenas com a visão do amor-perfeito e humano e doce que ela me inspira; flor de pele, roçar de ramos de cabelos. E, certamente, tem a ver com Deus. Para recompensar o tempo de vida que passei cuidando de suas delicadas e perfumadas criaturas, foi que Ele me tocou para aceitar o convite. Assim, recebo humilde o presente; e, entre as cores mais fulgurantes, tusso, tropeço e vou em frente, por entre as despedidas-de-verão, pela claridade perturbadora destes olhos, e por essa dádiva magnífica, tardada brincadeira de Deus.


Guttemberg Guarabyra

Guttemberg Nery Guarabyra Filho (Barra do Rio Grande (Bahia), 20 de novembro de 1947) é um músico, compositor, escritor e poeta brasileiro.
Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções "Mestre Jonas" e "Outra vez na estrada" (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), "Casaco marrom" (com Renato Correa e Danilo Caymmi), "Sobradinho" (com Luiz Carlos Sá) e "Espanhola" (com Flávio Venturini).
Guarabyra foi também diretor e produtor musical de televisão, colunista e cronista da Agência Estado e do jornal Diário Popular. Publicou um livro de ficção - Do Outro Lado do Mundo (São Paulo: Editora Moderna, 1999).



Leia mais:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guttemberg_Guarabyra

http://www.germinaliteratura.com.br/gutbyra.htm






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